Vetos presidenciais impedem evolução da arbitragem e não devem ser mantidos

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No último dia 26 de maio, foi sancionada a Lei 13.129/2015. Confirmaram-se importantes alterações na Lei de Arbitragem (9.307/1996) decorrente do Projeto de Lei 406/2013 do Senado Federal, resultado do trabalho realizado pela Comissão de Juristas criada por aquela Casa Legislativa e presidida pelo eminente ministro Luís Felipe Salomão.
Na ocasião da sanção, para surpresa de muitos e especial decepção dos membros da Comissão, foram apresentados vetos aos parágrafos 2º, 3º e 4º, do artigo 4º da Lei. Os dispositivos disciplinavam a arbitragem no âmbito das relações de consumo e do trabalho. Aquelas alterações sinalizavam um movimento de democratização da arbitragem, que poderia finalmente deixar de ser método de resolução de litígios “de elite”.
Os fundamentos dos vetos[1], e os motivos pelos quais devem ser rejeitados pelo Congresso, já foram abordados de maneira inteligente e bem fundamentada em artigo publicado aqui na ConJur[2], de autoria do professor José Rogério Cruz e Tucci, que integrou a Comissão de Juristas.
O presente artigo visa, modestamente, acrescentar alguns poucos argumentos ao que já foi muito bem defendido pelo professor Tucci, especialmente no que diz respeito a noções de arbitrabilidade.
Arbitrabilidade é a característica inerente a um litígio que possibilita sua resolução por arbitragem. Pode tanto referir-se à matéria discutida (arbitrabilidade objetiva), quanto à capacidade das partes em firmar a convenção (arbitrabilidade subjetiva). Interessa ao presente artigo a arbitrabilidade objetiva, já que foi ela a afetada pelos vetos.
Os limites à arbitrabilidade objetiva são impostos pela legislação de cada país e encontra fundamento no “… interesse do legislador de limitar o poder das partes em excluir da apreciação pelo Poder Judiciário alguns litígios que possam suscitar discussões referentes a políticas públicas de natureza sensível. Considera-se que determinados tipos de litígios não devem ser retirados da solução pública por envolverem o interesse geral”[3].
Mesmo nos países mais entusiastas da arbitragem, há matérias universalmente reconhecidas como não arbitráveis. Dentre elas, destacam-se os litígios envolvendo direitos de família e direitos da pessoa; direitos personalíssimos (direito à vida, à liberdade, à integridade etc); matérias criminais; questões relacionadas a créditos da Fazendo Pública, dentre outras.
Outros temas, no entanto, embora considerados sensíveis, situam-se em zona limítrofe entre a arbitrabilidade e a não arbitrabilidade. A solução, para um lado ou para outro, depende diretamente da política legislativa ou da interpretação jurisprudencial de cada país. Nesta categoria, destacam-se as questões relativas à falência, propriedade intelectual, matérias relativas à concorrência, questões ambientais, matérias que versam sobre direitos difusos e coletivos, e, em menor grau, litígios que envolvam partes hipossuficientes, como aqueles decorrentes das relações de consumo e do trabalho.
No Brasil, os aspectos objetivo e subjetivo da arbitrabilidade são definidos no artigo 1º da Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996), ao estabelecer que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”.
A redação atual do parágrafo 2º do artigo 4º, dispõe que “nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula”. Não custa relembrar que nem todo contrato de adesão reveste relação consumeirista, e nem toda relação de consumo decorre de contrato de adesão. Daí dizer que este dispositivo toca apenas indiretamente as relações de consumo e não conferiu suficiente segurança, ao longo do tempo, para que os litígios de consumo fossem confiados tradicionalmente à arbitragem.
No cenário internacional, há quem vislumbre inclusive a “morte da inarbitrabilidade”[4]. Descreve-se, assim, o fenômeno de expansão da liberdade das partes em submeter seus conflitos à arbitragem. Litígios que antes eram infensos a solução arbitral, passaram a ser considerados arbitráveis. Esta tendência é observada tanto nas nações com postura mais liberal em favor da arbitragem, notadamente nos Estados Unidos, Suíça, Alemanha, como também naquelas mais conservadoras, inclusive em países em desenvolvimento, como os considerados de terceiro mundo e do Oriente Médio[5]. No Canadá, alguns litígios têm, por força de lei, a arbitragem como método de resolução não só preferencial mas até mesmo prioritário, e só poderão ser submetidos ao Judiciário se houver expressa renúncia das partes firmada em contrato[6].
Atenta à tendência mundial em favor da arbitragem, certa de ser este um dos caminhos adequados à constante busca pela efetividade da jurisdição, a Comissão de Juristas do Senado aceitou o desafio de tentar expandir a arbitrabilidade objetiva, sem desconsiderar as nossas peculiaridades.
Importante destacar que o trabalho da Comissão, desenvolvido ao longo de 6 meses e 13 longas reuniões, foram realizados com ampla transparência e sempre no sentido de ouvir e buscar contribuições. Foram enviados mais de 150 ofícios a diversas entidades representantes de diversos segmentos da sociedade civil. As 23 entidades que se prontificaram, participaram de audiências públicas realizadas ao longo de 4 longos dias de debates e trabalho. As sugestões manifestadas foram todas apreciadas, inclusive mais de 150 enviadas por canal virtual disponibilizado no site do Senado Federal especificamente para este fim.
Daí propostos os três parágrafos ao artigo 4º, em substituição ao parágrafo 2º, que passariam a ter a seguinte redação:
§ 2º Nos contratos de adesão a cláusula compromissória só terá eficácia se for redigida em negrito ou em documento apartado.
§ 3º Na relação de consumo estabelecida por meio de contrato de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem, ou concordar, expressamente, com a sua instituição.
§ 4º Desde que o empregado ocupe ou venha a ocupar cargo ou função de administrador ou diretor estatutário, nos contratos individuais de trabalho poderá ser pactuada cláusula compromissória, que só terá eficácia se o empregado tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou se concordar, expressamente, com a sua instituição.
Agora, com inegável atraso, surgem manifestações esparsas contrárias à arbitragem no âmbito do consumo e do direito do trabalho.
No que diz respeito às relações de consumo, verifica-se, pela simples leitura, que não há que se falar em qualquer risco ao consumidor – pelo menos não em risco maior do que o já existente! Pelo contrário, nas relações de consumo decorrentes de contratos de adesão (que certamente são a grande maioria), as arbitragens só poderiam ser instauradas pelo próprio consumidor, ou se houvesse sua concordância expressa.
Uma das mais respeitadas autoridades em direito do Consumidor no Brasil, Cláudia Lima Marques, resumiu em importante artigo publicado aqui na ConJur[7] motivos pelos quais, na sua visão, os vetos devem ser mantidos. Em síntese, defende que: (1) na arbitragem não se aplicaria o Código de Defesa do Consumidor; (2) a arbitragem seria sigilosa; (3) a arbitragem pode gerar abusos; e (4) os consumidores, caso aceitassem a jurisdição arbitral, poderiam deixar de ser beneficiados por súmulas, decisões judiciais repetitivas ou ações coletivas.
Apesar da aparente pertinência das considerações feitas, com a devida vênia, elas não se sustentam. E por um motivo simples, que dispensaria até uma análise mais profunda: todos estes pseudoproblemas se fossem existentes, já existiriam hoje, com a redação atual, independente dos vetos. Em outras palavras, quem defende os vetos esquece de se fazer uma pergunta: se a arbitragem representa ameaça ao direito dos consumidores, em que os vetos propostos os beneficiam? Ora, não há nada na atual Lei de Arbitragem que proíba a arbitragem no âmbito do consumo. O que a nova redação busca propor são maiores garantias ao consumidor!
Para não fugir ao debate, importante aprofundar a discussão. Primeiro, não é necessariamente verdadeiro afirmar que na arbitragem não se aplica – ou não se aplicaria – o Código de Defesa do Consumidor e ela será impreterivelmente dirimida por equidade. Pelo contrário, ousaria dizer que a intepretação sistemática conduziria a uma conclusão diversa. Da leitura do artigo 2º e parágrafos da Lei de Arbitragem, se pode extrair que as regras aplicáveis à arbitragem devem respeitar a ordem pública (parágrafo 1º, artigo 2o), e o Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, afirma que suas normas são “de ordem pública e interesse social, nos termos do artigo 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e artigo 48 de suas Disposições Transitórias” (artigo 1º, Lei 8.078). É mesmo inimaginável, nos dias atuais, examinar-se uma relação de consumo sem aplicar o Código de Defesa do Consumidor. Somente uma arbitragem de má-fé, levada a cabo por árbitros conscientemente mal intencionados, o desconsideraria. Se o compromisso contivesse cláusula de equidade seria nulo, e a sentença da arbitragem consequentemente nula (artigo 32, inciso I).
Não é, outrossim, correto dizer que a arbitragem privada é sigilosa. É certo afirmar que ela é geralmente sigilosa. Mas não necessariamente, o que depende do órgão em que se desenvolve, e sobretudo da vontade das partes. Ainda assim, o só fato de ser sigilosa não representa, por si, prejuízo ao consumidor.
Na arbitragem podem ocorrer abusos ou desvirtuamento do processo. Isto é fato inconteste, que vale não só para arbitragens relacionadas a matérias de consumo, mas para todas as arbitragens em geral. O que pode trazer credibilidade à instituição é a prática e a realidade. Só sai à rua quem confia que está seguro. Se o “clima” for de insegurança, melhor ficar em casa. Usar o exemplo malsucedido de uma câmara arbitral isolada é tão preconceituoso quanto afirmar que o Poder Judiciário é corrupto com base na conduta de um único juiz desonesto.
Por fim, afirmar que ao escolher a arbitragem o consumidor será privado do benefício de súmulas, decisões repetitivas, ou mesmo de ações coletivas é exercício de adivinhação. Quanto às ações coletivas, não se pode olvidar a lição do ministro Teori Zavascki, segundo o qual o substituído, titular do direito postulado, é levado a conservar-se inerte. Se agir correrá “…um risco adicional: aos litisconsortes, o de sofrer os efeitos da sentença de improcedência da ação coletiva; e aos demandantes individuais, o risco de não se beneficiarem da sentença de improcedência”[8].
Não se pode, de igual modo, projetar que na arbitragem necessariamente irá decidir-se contra o direito do consumidor estabelecido em súmulas ou decisões proferidas em incidentes repetitivos. Ora, a própria afirmação pressuporia, que todas – repito, todas! – as súmulas e decisões proferidas em incidentes repetitivos fossem benéficas aos consumidores…
No que diz respeito às relações de trabalho, a Comissão foi cautelosa, sendo até criticada por isso. Baseou sua posição principalmente no fato de que a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho já diferencia o tratamento dado aos cargos de direção e executivos, ao entender que possuem com as empresas relação regida pela lei civil, e não pela CLT. Exemplo dessa distinção é a Súmula 269[9] daquela corte.
Razão não há para afastar a arbitragem quando houver litígio envolvendo executivos com cargo de direção. Ainda assim, usou-se da mesma garantia utilizada na relação de consumo: a arbitragem só poderia acontecer se fosse iniciada pelo trabalhador, ou a ela houvesse anuência expressa.
Feitas estas considerações, percebe-se que os vetos não devem se sustentar. Caberá ao Congresso demonstrar qual direção pretende seguir, e qual sinal pretende passar para a sociedade. O escopo das matérias arbitráveis, dependem da confiança depositada e da atitude com que certos países encaram a arbitragem. No Brasil, a evolução da arbitragem nos últimos 20 anos é inconteste. Resta saber se esta evolução continuará sendo estimulada ou, ao contrário, se é chegado o momento de vetar esta saudável evolução.
[1] www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/Msg/VEP-162.htm
[2] Vetos inusitados conspiram contra o futuro promissor da arbitragem
[3] GONÇALVES, Eduardo Damião. Arbitrabilidade objetiva. 2008. Tese (Doutorado) Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. P. 14.
[4] YOUSSEF, Karim. The death of inarbitrability. In. Arbitrability – International & Comparative Perspectives. Edited by. Loukas A. Mistelis and Stavros L. Brekoulakis. Wolters Kluwer Law & Business, The Netherlands. P. 47.
[5] “The evolution is particularly evident in the U.S. and Europe. Expansive approach to arbitrability are most evolved in common law jurisdictions, but the liberal trend is also clearly noticeably in many civil law States. It has accelerated, in recent years, to reach emerging jurisdictions, and in some cases, to ultimately extend to domestic arbitration, as is the case in the U.S.” (IN. YOUSSEF, Ob. Cit. pp. 51/52)
[6] O Quebec Professional Artists Act, traz a seguinte disposição no seu art. 37:
“In the absence of an express renunciation, every dispute arising from the interpretation of the contract shall be submitted to an arbitrator at the request of one of the parties”.
[7] É preciso manter veto à arbitragem privada de consumo
[8]In. ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo – Tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo, Revista dos Tribunais,, 2006, p. 203.
[9] “O empregado eleito para ocupar cargo de diretor tem o respectivo contrato de trabalho suspenso, não se computando o tempo de serviço deste período, salvo se permanecer a subordinação jurídica inerente à relação de emprego.”
Por Caio Cesar Rocha, advogado, sócio do escritório Rocha Marinho e Sales Advogados e membro da comissão de juristas que elaborou o anteprojeto de lei para revisar a Lei de Arbitragem. Tem doutorado em Processo Civil pela USP e pós-doutorado pela Columbia University, de Nova York.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 13 de junho de 2015, 10h38